O sucesso de The Last of Us e Fallout pode mudar Hollywood?
É engraçado como algumas memórias permanecem indeléveis mesmo após décadas. Era natal em 1985, eu tinha meus 9 anos de idade, e com meu irmão Heuler, ainda com 4 anos de idade, ficamos alucinados com nosso primeiro console de videogames, um Atari 2600 com uma manete e 4 cartuchos de jogos (Pac-man, Pitfall, Enduro e River Raid). Sob a relutância de minha mãe, que insistia que o Atari estragaria a única TV que tínhamos em casa uma Toshiba de tubo, passávamos horas jogando e revezando a manete, só saindo para jogar bola ou para passear de bicicleta pelas ruas do bairro.
Imagem: Atari 2600/Reprodução
O console havia sido lançado no Brasil em setembro de 1983 numa época em que o entretenimento só existia através da TV aberta e nos Gibis (HQs). As propagandas incessantes de empresas como Estrela, Mattel, Caloi e Gradiente competiam com os novos sonhos de consumo das crianças da época, os videogames. Naquela época a tecnologia existente só permitia a criação de jogos com gráficos de 8 bits, mas ainda na década de 80 surgiram jogos da Nintendo e outras empresas que trouxeram um universo ainda mais amplo como o já existente nos fliperamas espalhados pelas cidades. Desde esta época, toda criança na face da terra sonhava em ver retratados no cinema ou na TV jogos como Final Fantasy, Mega Man, Street Fighter, Donkey Kong, Castlevania, Prince of Persia, dentre vários outros.
Imagine então a decepção quando o primeiro live-action do clássico jogo Super Mario Bros, da Nintendo ganhou as telas do cinema em 1983. Estrelado por Bob Hoskins (Mario), John Leguizamo (Luigi) e Dennis Hopper (Koopa), esta adaptação pavorosa deu início a uma série de grandes fiascos que viriam em seguida, como Street Fighter – A Última Batalha (1994), Double Dragon (1994), e vários outros que nem valem a pena citar.
Apesar de alguns breves relances de competência como em Mortal Kombat (1995) e em Terror em Silent Hill (2006), ficou clara a enorme dificuldade em adaptar para outras mídias estes jogos. Os dois citados por exemplo, só continuam memoráveis para quem não arriscou reassistí-los nos dias de hoje.
Parece no entanto que os dias de adaptações fracassadas do universo dos games ficou para trás! O que antes era sinônimo de fiasco com roteiros meia boca, apressados e totalmente desconectados do material original, agora têm se transformado cada vez mais em um dos mais promissores segmentos da indústria do entretenimento. O sucesso de produções como The Last of Us, Arcane, Castlevania, Fallout e The Witcher (baseada nos livros, mas impulsionada pelo sucesso dos jogos), o futuro das adaptações de videogames em séries parece mais promissor do que nunca!
Um novo padrão de qualidade
Diferente dos filmes que precisam condensar enredos complexos em poucas horas, as séries oferecem espaço para desenvolvimento de personagens e de narrativas de maneira mais fidedigna às obras originais. Além de permitir explorar longos arcos narrativos, as séries conseguem aprofundar os mundos apresentados e também respeitar o ritmo do material original, o que contribui para uma experiência mais imersiva e autêntica para os fãs.
Plataformas como Netflix, HBO Max e Amazon Prime Video estão apostando alto nesse segmento. Além de Arcane, baseada no universo de League of Legends, a Netflix também já lançou Cyberpunk: Edgerunners, uma animação inspirada no jogo Cyberpunk 2077, que foi bem recebida pelo público e crítica. Com o avanço da tecnologia e orçamentos cada vez mais robustos, a tendência é que mais jogos populares sejam adaptados com alta qualidade e produções ambiciosas.
Dentre os bem-sucedidos exemplos, destaco duas grandes séries que consolidaram de vez este novo nicho no mercado de entretenimento: The Last of Us e Fallout.
THE LAST OF US (2023- )
Imagem: Divulgação/HBO
A série teve como base o jogo de ação, aventura, horror e ficção científica desenvolvido pela Naughty Dog e publicado pela Sony Computer Entertainment. Lançado exclusivamente para PlayStation 3 em 14 de junho de 2013, o jogo foi um absoluto sucesso desde então. Com um enredo já bem cinematográfico, o jogo se diferenciava dentre os demais pela trama sombria, dramática e muito bem contada, com situações tensas e gráficos impressionantes para a época.
Na história, acompanhamos o protagonista Joel, um homem encarregado de escoltar uma adolescente chamada Ellie através de um Estados Unidos pós-apocalíptico. The Last of Us é jogado a partir de uma perspectiva em terceira pessoa, com os jogadores usando armas de fogo, armas improvisadas e furtividade para se defenderem tanto de humanos hostis quanto de criaturas canibalísticas infectadas por uma mutação do fungo Cordyceps. Um “Modo de Escuta” permite a localização de inimigos por meio de uma escuta e percepção espacial aprimoradas. Armas podem ser melhoradas usando itens recolhidos do ambiente, e há um modo multijogador on-line em que até oito jogadores podem entrar em diferentes modos de partidas cooperativas ou competitivas.
Para a adaptação do jogo, considerada uma das melhores de todos os tempos, foram escalados o ator Pedro Pascal como Joel Miller, Bella Ramsey como Ellie Williams, Anna Torv como Theresa ‘Tess’ Servopoulos e Gabriel Luna como Tommy Miller. A 1ª temporada estreou em 2023 pela HBO Max e foi um sucesso estrondoso, adaptando todo o arco do primeiro jogo lançado. Com nota 8,7 no IMDB e com avaliação positiva no Rotten Tomatoes de 96% dos críticos e de 88% do público, a série se tornou referência máxima em adaptações com assertividade, conseguindo estourar a bolha dos que já conheciam o jogo, levando muitas pessoas a se aventurarem também no mundo dos games.
Por trás da equipe criativa da série, Neil Druckmann, co-criador de The Last of Us, esteve envolvido diretamente, garantindo que os elementos mais importantes da história fossem respeitados. Isso criou uma ponte entre as expectativas dos jogadores e a visão criativa da obra, que trouxe às telas um universo rico, sombrio, e com as reviravoltas bem encaixadas na trama. Ainda que as cenas de ação e horror tenham sido reduzidas, o clima tenso do mundo pós-apocalíptico continua muito marcante, deixando claro que ninguém naquele mundo está a salvo. As interpretações de todos está excelente, em especial de Pedro Pascal e de Bella Ramsey, e os complementos criados especificamente para a série conseguiram expandir um universo já muito bem consolidado, com efeitos visuais incríveis e com uma fotografia sensacional.
Na sequência do jogo, chamada The Last of Us Part II, lançado em 2020, a história se passa cinco anos após os eventos do jogo original, com Ellie se tornando a grande protagonista, sendo a personagem jogável e contando com o retorno de Joel. A 2º temporada da série estreia em 13 de abril deste ano, e adaptará todo o arco desta sequência.
FALLOUT (2024- )
Imagem: Divulgação/Amazon Prime Video
Fallout é uma franquia de jogos de RPG pós-apocalípticos criada em 1997 por Tim Cain e Leonard Boyarsky na Interplay Entertainment. A série se passa durante a primeira metade do 3º milênio, e seu cenário retrofuturista atompunk e obras de arte são influenciados pela cultura do pós-guerra dos Estados Unidos dos anos 1950, com sua combinação de esperança pelas promessas da tecnologia e o medo oculto da aniquilação nuclear.
O primeiro título da série, Fallout, foi desenvolvido pela Black Isle Studios e lançado em 1997, e sua sequência, Fallout 2, no ano seguinte. Com o RPG tático Fallout Tactics: Brotherhood of Steel, o desenvolvimento foi entregue à Micro Forté e à 14 Degrees East. Em 2004, a Interplay fechou a Black Isle Studios e continuou a produzir Fallout: Brotherhood of Steel, um jogo de ação com elementos de RPG para PlayStation 2 e Xbox, sem a Black Isle Studios. Fallout 3, a terceira entrada da série principal, foi lançado em 2008 pela Bethesda Softworks, e foi seguido por Fallout: New Vegas, desenvolvido pela Obsidian Entertainment, lançado em 19 de outubro de 2010. Fallout 4 foi lançado em 2015 e Fallout 76 lançado em 14 de novembro de 2018.
Em 2020, a Amazon adquiriu os direitos da franquia de jogos para produzir um projeto de ação live-action, e em abril de 2024 estreou a série pelo Amazon Prime Video. Criada por Graham Wagner e Geneva Robertson-Dworet, a produção ainda contou com a participação dos co-criadores de Westworld, Jonathan Nolan (produtor e diretor) e Lisa Joy (produtora), como condutores da série. De forma sábia a equipe criativa evitou adaptar diretamente um dos vários jogos da franquia, escolhendo uma rota criativa mais ousada e apropriada: uma história que se passa canonicamente nesse universo e na continuidade dos jogos, mas em uma primeira temporada de 8 episódios que não está diretamente conectada especificamente a nenhum dos games, com toda a liberdade narrativa possível. Na trama, acompanhamos Lucy (Ella Purnell), uma jovem que foi criada em um abrigo radioativo construído pela empresa Vault-Tec há mais de 200 anos após o início da guerra nuclear, que acaba deixando sua casa para encontrar seu pai Hank MacLean (Kyle MacLachlan) que foi sequestrado numa invasão ao abrigo. Em sua missão, Lucy acaba descobrindo um mundo pós-apocalíptico perigoso e cheio de monstros, onde conhece o soldado Maximus (Aaron Moten) e um caçador de recompensas morto-vivo conhecido como The Ghoul (Walton Goggins).
Os roteiristas conseguiram capturar com muita qualidade o tom e o cenário dos jogos. Visualmente, assistimos um pós-apocalipse nuclear que mescla inspirações da cultura estadunidense dos anos 50, bem Jetsons, com um modernismo atompunk, trazendo uma estética retrofuturista que mistura velho-oeste e um complexo militar-industrial saído diretamente das paranoias da Guerra Fria e do medo da aniquilação nuclear dos anos 50 e 60. Há uma atenção primorosa para detalhes nas armas, nos figurinos, na arquitetura, nas maquiagens e até na trilha sonora, com um nível técnico primoroso que cria um universo ao mesmo tempo confortável e assustador. As atuações do trio de protagonistas Lucy, Maximus e The Ghoul também se encaixam perfeitamente à trama muito bem entrelaçada, buscando aliar o presente da série ao passado dramático dos personagens. Os flashbacks funcionam muito bem na trama, em especial quando retratam a história trágica do Ghoul interpretado por Walton Goggins, que no passado era Cooper Howard, um astro famoso de Hollywood.
Com uma 2º temporada já garantida (ainda sem previsão de estreia), a série conseguiu a nota de 8,3 no IMDB e a avaliação positiva de 94% dos críticos e de 91% do público no Rotten Tomatoes.
O que esperar para o futuro?
Com o sucesso recente muitas novas adaptações estão a caminho e a próxima década pode consolidar as adaptações de videogames como um dos nichos mais consolidados, trazendo histórias ricas e cativantes para uma audiência ainda maior. O presidente da Sony, Jim Ryan, anunciou recentemente que três de seus jogos farão a transição para esse formato nos próximos anos. Essa estratégia faz parte de um movimento maior no setor, onde adaptações de jogos para a TV e cinema estão se tornando cada vez mais comuns.
A Netflix trabalha em produções inspiradas em Assassin’s Creed (Ubisoft) e Horizon Zero Dawn (Sony). A Amazon Prime Vídeo já tem em mãos um projeto para adaptação de God of War (Sony), Já a franquia Gran Turismo (Sony) ainda não tem uma plataforma definida, mas a expectativa é alta dado o prestígio do jogo na indústria.
Mesmo alguns fracassos nestas adaptações não chegaram a desanimar os produtores. Em 2022, tivemos a tentativa catastrófica da Netflix em adaptar numa série a já longeva franquia Resident Evil, cuja nota 4.2 no IMDB evidencia o desprezo do público e da crítica pela obra. Também em 2022 a Amazon Prime Video adaptou o game Halo com um resultado mediano (nota 7.2 no IMDB, com somente 2 temporadas), e o mesmo pode ser dito quanto à adaptação da franquia de jogos Twisted Metal (Sony) pela Peacock, com nota de 7.3 no IMDB e com uma 2ª temporada já garantida na plataforma da HBO Max aqui no Brasil.
Tudo enfim, leva a crer que o futuro das adaptações de videogames nas séries é promissor e repleto de possibilidades. Com um novo padrão de qualidade, com a participação ativa dos criadores e com investimentos cada vez mais relevantes das plataformas de streaming, podemos esperar produções cada vez mais fiéis e impressionantes. O que antes era um desafio, agora tem se tornado uma oportunidade de ouro para contar grandes histórias de forma envolvente e inovadora.