
Como um cinéfilo entusiasmado com tudo que envolve o universo pop, de cinema a livros, de HQs a séries, de animações a animes, é muito comum termos como referência traços, cenas e diálogos no imaginário nostálgico. Basta um cartaz com uma cena icônica, como um robô metálico com metade do rosto humano saindo de sua viatura policial, ou de uma imagem sombreada de um menino pedalando uma bicicleta voadora, com um alienígena no cesto da frente e uma lua cheia enorme por trás, para nos remeter, respectivamente, aos filmes Robocop – O Policial do Futuro (1987, de Paul Verhoeven) e E.T.: O Extraterrestre (1982, de Steven Spielberg). E isso sem contar, nos dias atuais, os inúmeros memes com cenas de filmes e séries, como John Travolta confuso, extraído direto de Pulp Fiction: Tempo de Violência (1994, de Quentin Tarantino), ou Steve Carell gritando “Oh, no”, da série The Office (2005-2013).
No entanto, o que seriam de filmes como Superman: O Filme (1978, de Richard Donner), Star Wars: Uma nova Esperança (1977, de George Lucas), Por um Punhado de Dólares (1964, de Sergio Leone) sem suas incríveis trilhas sonoras? Assistir a qualquer um destes clássicos citados acima sem ouvir suas trilhas sonoras é abrir mão de mais da metade da emoção de suas cenas, corrompendo toda a experiência audiovisual destas obras incríveis.
Em minha série de matérias sobre alguns dos grandes compositores do cinema, acho digno e muito justo começar por Ennio Morricone, um dos mais icônicos maestros compositores da sétima arte, cujas obras iniciadas na década de 1960 transcendem gerações e atraem, até nos dias de hoje, inúmeros novos fãs.
ORIGEM E INÍCIO DA CARREIRA
Ennio Morricone regendo uma de suas composições. Foto: Wikimedia Commons
Nascido em Roma em 10 de novembro de 1928, Ennio Morricone cresceu em uma família de músicos. Seu pai, Mario Morricone, era trompetista e teve grande influência sobre ele. Ennio iniciou os estudos musicais ainda criança, mostrando desde cedo talento para a composição. Ingressou no Conservatório de Santa Cecília, um dos mais prestigiados da Itália, onde se formou em trompete, composição e música coral.
Ele começou sua carreira escrevendo músicas para rádio e televisão na década de 1950. Sua entrada no cinema se deu como arranjador de trilhas de outros compositores, mas logo ele passou a assinar suas próprias composições. O ponto de virada veio na década de 1960, quando começou a colaborar com o diretor Sergio Leone (Três Homens em Conflito, Era uma vez no Oeste, Meu Nome é Ninguém), seu ex-colega de escola e grande amigo até 1989, ano do falecimento do cineasta.
Morricone não foi apenas um compositor — foi um arquiteto de emoções. Com mais de 500 trilhas sonoras compostas, sua obra vai muito além do papel de fundo musical para tornar-se personagem essencial da narrativa cinematográfica.
A REVOLUÇÃO SONORA DOS WESTERNS
Morricone com os diretores Sergio Leone e Henri Verneuil em 1972 – Foto: Vincent Rossell
Morricone e Sergio Leone estudaram juntos na escola primária em Roma, e anos depois essa amizade rendeu algumas das mais memoráveis colaborações da história do cinema.
Nas décadas de 50 e 60, quando o cinema italiano era essencialmente voltado para as comédias, o diretor Sergio Leone foi um dissidente, que se especializou primeiro em filmes épicos, como Os Últimos Dias de Pompéia (1959) e Sodoma e Gomorra (1962), mas que depois se dedicou na recriação do Oeste e nos filmes de western, conhecidos tradicionalmente como Western Spaghetti.
A parceria entre os dois amigos, na chamada Trilogia dos Dólares, reinventou o gênero faroeste e levou ao estrelato artistas inesquecíveis, como o protagonista solitário destes 3 primeiros filmes, Clint Eastwood.
- Por um Punhado de Dólares (A Fistful of Dollars, 1964)
- Por uns Dólares a Mais (For a Few Dollars More, 1965)
- Três Homens em Conflito (The Good, the Bad and the Ugly, 1966)
Para compor as trilhas destes faroestes, Morricone introduziu sons como assobios, chicotes, sinos e corais tribais, criando temas que quase dispensavam diálogos. É muito comum encontrar alguém assobiando seus temas sem ter ideia de a qual filmes eles remetem, sinal de sua absoluta genialidade.
E a parceria com Sergio Leone não parou com a Trilogia dos Dólares, protagonizados por Clint Eastwood. Ainda ao lado de Sergio Leone, Morricone foi responsável pela trilha sonora de vários outros clássicos do faroeste, todos clássicos absolutos do gênero:
- Era uma Vez no Oeste (Once Upon a Time in the West, 1968)
- Quando Explode a Vingança (Duck, You Sucker, 1971)
- Meu Nome é Ninguém (Il mio nome è Nessuno, 1973)
DO CORAÇÃO DA ITÁLIA PARA O MUNDO
Cinema Paradiso (1988) – Fonte: IMDB,com
O sucesso da parceria com seu amigo Sergio Leone nos filmes de faroeste levou o compositor ao estrelato, mas sua genialidade já era notável em trabalhos iniciados no final da década de 1950. Morricone vendeu mais de 70 milhões de discos em todo o mundo durante sua carreira de 7 décadas, incluindo 6,5 milhões de álbuns e singles na França, mais de três milhões nos Estados Unidos e mais de dois milhões de álbuns na Coreia do Sul. O compositor chegou a trabalhar com 22 cineastas, com trilhas sonoras incluídas em mais de 500 filmes. Entre suas trilhas mais emocionantes, destaco abaixo algumas das mais impressionantes:
- Cinema Paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore
- A Missão (1986), de Roland Joffé
- O Segredo das Velhas Escadas (1975), de Mauro Bolognini
- O Grande Silêncio (1968), de Sergio Corbucci
- Novecento (1976) e O Último Tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci
- Prelúdio para Matar (1975) e Suspíria (1977), de Dario Argento
- Era uma Vez na América (1984), de Sergio Leone
- Busca Frenética (1988), de Roman Polanski
- Os Intocáveis (1987), de Brian DePalma
- Kill Bill – Volume 1 (2003), Os Oito Odiados (2015) e Era uma vez em… Hollywood (2019), de Quentin Tarantino
Essas obras provam que sua maestria ultrapassava gêneros. De histórias épicas a dramas intimistas, ele dava voz à alma do filme.
RECONHECIMENTO TARDIO, GLÓRIA ETERNA
Ennio Morricone recebendo o Oscar Honorário em 2007 das mãos de Clint Eastwood – Crédito: Michael Caulfield – Getty Images
Morricone recebeu um Oscar Honorário em 2007, e só em 2016, aos 87 anos, levou seu primeiro Oscar por Melhor Trilha Sonora, por “Os Oito Odiados” (The Hateful Eight), de Quentin Tarantino, redimindo um pouco a academia por esta injustiça de décadas.
CURIOSIDADES SOBRE O MESTRE MORRICONE
🔹 Não gostava de faroestes no início
Ironicamente, o homem que reinventou as trilhas de westerns inicialmente não se interessava pelo gênero. Foi convencido por seu amigo Sergio Leone a embarcar no projeto com liberdade criativa total.
🔹 Desentendimento com Quentin Tarantino
Antes de compor para Os Oito Odiados (2025), Morricone criticou publicamente o uso que Tarantino fazia de sua música em filmes anteriores (como Kill Bill em Bastardos Inglórios) — alegando que suas composições eram colocadas fora de contexto. Mais tarde, os dois se reconciliaram e Tarantino lhe deu liberdade para criar uma trilha original do zero.
🔹 Nunca saiu da Itália
Apesar da fama mundial, Morricone viveu a maior parte da vida em Roma e recusava mudar-se para Hollywood, preferindo compor em sua cidade natal.
🔹 Quase médico
Seu pai queria que ele fosse médico, mas Morricone escolheu a música. Ainda jovem, tocava trompete profissionalmente para sustentar a família.
🔹 Adorava xadrez
Morricone aprendeu o jogo quando tinha apenas 11 anos. Antes de sua carreira musical decolar, ele jogou em torneios de clubes em Roma em meados da década de 1950. Seu primeiro torneio oficial foi em 1964, onde ganhou um prêmio na terceira categoria para amadores. Ele até foi treinado por 12 vezes campeão italiano Stefano Tatai por um tempo. Logo ficou ocupado demais para o xadrez, mas sempre mantinha um grande interesse no jogo e estimava seu pico de classificação ELO em quase 1700. Ao longo dos anos, Morricone jogou xadrez com muitos grandes nomes, incluindo os famosos Garry Kasparov, Anatoly Karpov, Judit Polgar e Peter Leko.
🔹 Escrevia à mão todas as partituras
Até o fim da vida Morricone escrevia suas composições à mão, sem recorrer a softwares ou teclados eletrônicos.
🔹 Não assistia aos próprios filmes
Morricone raramente assistia aos filmes com suas trilhas sonoras depois de prontos. Preferia se concentrar no processo criativo durante a composição.
TOP 8 TRILHAS SONORAS DE ENNIO MORRICONE NO CINEMA
Baseando-se exclusivamente na minha opinião como apaixonado por cinema e trilhas sonoras, este é meu ranking com as 8 melhores trilhas sonoras do genial Ennio Morricone.
8. OS OITO ODIADOS (The Hatefull Eight, 2015)
A trilha sonora de Os Oito Odiados, único filme de Tarantino que traz composições originais de Morricone (o diretor usou faixas diversas do compositor em vários de seus filmes) marcou por diversos motivos: ele foi o retorno de Morricone ao gênero de faroeste, concretizou um desejo conhecido do diretor e representou a merecida vitória no Oscar de Morricone. Mas o fato de que o maestro foi presenteado com uma estatueta apenas em 2015 é mais um testamento das falhas da Academia do que um sinal de merecimento tardio do compositor (apesar do Oscar ter presenteado Morricone com um prêmio por conjunto da obra em 2007). Aos 87 anos, Morricone criou peças intensas e marcantes para Os Oito Odiados, de alguma maneira mostrando que mesmo depois de tanto tempo ainda tinha muito a dizer.
7. ERA UMA VEZ NA AMÉRICA (Once Upon a Time in America, 1984)
Encerrando uma parceria histórica entre o diretor Sergio Leone e o compositor, o maestro compôs sua última trilha para Leone em 1984, com o clássico Era Uma Vez na América. Relembrada eternamente pela sua flauta melancólica, em especial na canção Deborah´s Theme (do vídeo acima), esta última parceria tem uma história amarga por trás. Apesar de ser considerada uma das melhores criações de Morricone, a trilha de Era Uma Vez na América não pode ser considerada entre os indicados a Melhor Trilha Sonora no Oscar porque o nome de Morricone foi acidentalmente cortado dos créditos iniciais, para tornar a duração do filme mais curta.
6. A MISSÃO (The Mission, 1986)
A Missão, longa de 86 de Roland Joffé e uma das mais relembradas trilhas sonoras de Morricone, é outro exemplo de sua habilidade de capturar atmosferas e sentimentos e depositá-las em suas composições. Contando a história de um missionário jesuíta na América do Sul, A Missão combina cantos litúrgicos com batidas, cantos hispânicos e cordas, que refletem as diferentes culturas retratadas no filme. Marcando sua segunda indicação ao Oscar – a primeira foi pelo memorável trabalho em Cinzas no Paraíso (1978) – Morricone sempre reiterou que este seu trabalho certamente deveria ter vencido a estatueta, até porque o ganhador, Por Volta da Meia-Noite, de Herbie Hancock, gerou controvérsias por usar peças musicais compostas anteriormente.
5. OS INTOCÁVEIS (The Untouchables, 1987)
Morricone também criou uma de suas músicas mais memoráveis em sua parceria com Brian DePalma no drama Os Intocáveis, de 1987, relembrado principalmente por aquela sinfonia de trompetes, e uma melodia que não apenas combina perfeitamente com a atmosfera do submundo dos crimes nos EUA como cria um sentimento de expectativa crescente. Toda a trilha sonora de Os Intocáveis é certeira, mas é praticamente impossível esquecer o tema de Al Capone, que combina perfeitamente com a performance caricata de Robert DeNiro.
4. POR UM PUNHADO DE DÓLARES (Per un Pugno di Dollari, 1964)
É uma tarefa simplesmente impossível selecionar apenas alguns dos trabalhos de Morricone para da Trilogia dos Dólares. Os três filmes são marcados por composições não apenas inesquecíveis como revolucionárias, e por isso, ao listar suas trilhas mais importantes, é necessário abrir um espaço para a música que deu início a tudo. Em Por Um Punhado de Dólares, Morricone (creditado comoDan Savio para não afastar o público americano, pouco acostumado a westerns italianos) deixou um marco na cabeça de todos que assistiram: um assobio marcante e uma guitarra elétrica totalmente peculiar, que entrega ao filme um clima único. Como Morricone compôs as músicas antes do longa ser filmado, é fato conhecido que Leone prolongava cenas só para deixar a música do compositor tocar na íntegra. O resultado disso mudou o cinema para sempre.
3. CINEMA PARADISO (Nuovo Cinema Paradiso, 1988)
Apesar de ser lembrado pelo tom forte e extravagante de faroestes, histórias de crime ou de drama, uma de suas obras mais sensíveis está em Cinema Paradiso, de 1988, o longa que marcou o início de sua parceria com o diretor italiano Giuseppe Tornatore. Para embalar a história de vida de um cineasta e o nascimento de seu amor pelo cinema, Morricone investiu em um instrumental mais intimista e delicado, com piano, celesta e cordas.
2. ERA UMA VEZ NO OESTE (Once Upon a Time in West, 1968)
Ainda com Sergio Leone, Morricone criou uma das trilhas mais inesquecíveis para o longa Era uma Vez no Oeste de 1968, meu filme predileto do gênero faroeste, criando um clima muito mais romântico e melancólico do que sua trilogia faroeste. As primeiras notas do tema principal do longa são instantaneamente reconhecíveis, mas para esse longa, as composições de Morricone também são lembradas pelos temas criados para cada um dos personagens, particularmente ao da personagem de Claudia Cardinale, Jill. Novamente, a trilha do italiano foi composta antes das filmagens, e Leone tinha um método curioso de gravar, tocando as faixas no estúdio para que os atores atuassem em cima das composições de Morricone. Minha canção favorita, no entanto, foi a composta para o personagem do “Homem com a gaita”, personagem interpretado pelo ator Charles Bronson. Inesquecível!
1. TRÊS HOMENS EM CONFLITO (The Good, the Bad and the Ugly, 1966)
É praticamente impossivel deixar a trilha sonora de Três Homens em Conflito de fora deste ranking, e para mim, ela é a mais icônica de todas. Enquanto ele estabeleceu uma base brilhante para a conclusão da trilogia deste os outros dois primeiros filmes, é em Três Homens em Conflito que o clima grandioso de Morricone chega em seu auge. Seria impossível relembrar esse clássico sem ouvir a guitarra, o assobio, e aquele canto peculiar, que constroem o clímax de Três Homens em Conflito. Sua sequência mais memorável, no fim do longa, no cemitério, seria absolutamente diferente sem a criação de Morricone. Mas não é apenas esse auge que faz a trilha do filme de 66 tão brilhante. Neste longa, Morricone cria temas para cada um dos personagens, associando cada um deles com um instrumento ou som específico, assim estabelecendo uma relação entre música e filme que se tornam indissociáveis. Este processo se repetiria no brilhante Era uma Vez no Oeste (1968), também de Sergio Leone.
LEGADO IMORTAL
Ennio Morricone nos deixou em 6 de julho de 2020, aos 91 anos de idade, após um acidente doméstico. Ainda segundo Giorgio Assuma, advogado e amigo do artista, Morricone escreveu o próprio obituário. No texto, ele se despede de sua esposa, Maria Travia, — a quem cita a “despedida mais dolorosa” — de seus filhos, netos, amigos e de seu amigo, o diretor de cinema Giuseppe Tornatore.
Suas composições, entretanto, continuam mais vivas do que nunca nos filmes, nas orquestras e na memória afetiva de milhões. Sua música não apenas acompanhou cenas: ela contou histórias que palavras jamais poderiam descrever.